sábado, 10 de março de 2018

GAIA




Fomos recebidos em um ensolarado início de tarde. A dona da casa chegou até nós levando no colo uma cachorrinha pequena e magra. Sorridente, apresentou-nos dizendo que havia mais um membro na família. Cansada e com muito calor sorri gentil e ficamos por ali mesmo conversando e apreciando o lugar. Estávamos lá para uma breve temporada na casa de praia do casal.

São lindos e queridos, mas estou aqui para falar da cadelinha. Hoje vi fotos dela e resolvi aceitar o chamado para escrever. O nome dela é Gaia. Nos primeiros dias eu insistia em entender que o nome da cachorra era Maia. Sei lá por que!
Como parte das apresentações foi dito que estava abandonada; de rua; no corredor da morte; magrinha e feia; desejávamos há muito tempo e o destino nos reservou Gaia; tinha que ser ela, estava escrito; agora está assim, linda, em apenas cinco dias aqui em casa; deve ter uns três meses, não se sabe direito. Vai ficar mais tempo aqui, mas vamos levá-la para o apartamento onde, sei, ficará educadinha e muito obedientezinha, já dá pra ver. Agora que vou aposentar ter um cachorro, que era um desejo antigo, é tudo de bom!

Gaia viveu o deleite dos primeiros dias no colo de um jovem casal que estava de partida logo que chegamos. Até ai, uma lady. Quando o casal foi embora Gaia mostrou-se acabrunhada, decerto, pressentindo a falta do colo, mas, feliz, finalmente teria um lar. No dia seguinte começou com peraltices e desobediências rompendo limites e mostrando a que veio. Atribuiu-se a recaída aos maus hábitos da convivência farta em carinho e ausência de freios, mas agora começaria o processo de aprendizagem.

Da minha parte relembrei com uma frequência acima dos meus planos a minha experiência com um cachorro e contei muitas histórias: do quanto tentei durante longos meses; do quanto investi; do quanto fui e voltei em decisões de quero muito, não quero mais; do quanto fui feliz com ele e o quanto rimos juntos; das patas enlameadas na parede branquinha; dos carrapatos e das lesmas grudadas no longo pelo de Golden Retriever e do quanto ele gostava de torturar as lagartas do quintal; das margaridas brancas destruídas; dos buracos pelo chão nativo onde meses depois se encontrava ossos enterrados para dias vindouros; das vezes que adentrava pela casa com o seu corpão derrubando tudo em tom de brincadeira; da resistência em entrar na casinha de paredes de tijolos que mandei fazer com carinho de mãe. E de muito mais!

Disse, ainda, da minha incompetência para dar tanto amor quando estou apegada à ordem e quietude de jardins floridos e paredes brancas. Ou que não consigo me fazer presente em linguagens que não seja o palavreado dos humanos e nessa confusão me torno refém de outros animais. Disse, também, da imensa dor que senti quando redigi o texto de doação para divulgar entre os amigos declarando a minha incapacidade e implorando por uma família onde houvesse criança para brincar com o Uran. E que mantenho no meu mural fotos dele e marcas eternas das suas unhas pelas minhas pernas e, claro, doces lembranças.

Gaia é uma vira-latas de pelo macio e olhar terno. Na primeira tarde que voltamos da praia encontramos buracos pelo belo jardim de terra fofa e flores miúdas. O Dono reclamou e chamou Gaia para ensinar que aquilo não se faz levando-a a encostar o focinho no buraco fresquinho para cheirar a terra molhada e que isso não se repita. Percebeu-se ali uma lição de pai amoroso instituindo limites necessários. O buraco foi fechado e Gaia correu desconfiada com o rabo entre as pernas para refugiar-se no pufe forrado especialmente para ela. Quem forrou foi a Dona usando uma de suas coloridas mantas. Era, também, a Dona quem falava doce e carinhosamente, aconchegava, colocava panos quentes, aparava todas as pontas, ponderava, apostava em Gaia oferecendo-lhe do bom e do melhor em carinho e materialidade. Via-se que estava feliz com a cachorrinha.

Aos poucos Gaia foi entendendo que não podia entrar nos quartos, nem na sala, na cozinha também não; não podia latir à toa nem muito alto; também não podia espantar os passarinhos; e fazer necessidades evacuativas no jardim era visto como uma prática indesejada que exigia dos donos começarem cedo a limpar tudo levando junto uma pequena dose de mau humor. Buracos no jardim, nem pensar! Como todo enlace havia exigências e concessões. Nesse começo mais exigências que concessões. Assim, Gaia foi ouvindo muitos nãos e experimentando os limites da convivência com os humanos em aprendizagens do “manda quem pode obedece quem tem juízo”. Havia, contudo, no ar uma suspeita e o momento era de muita vulnerabilidade para adotantes e adotada.

Quando voltamos da praia na tarde do outro dia Gaia havia cavado mais fundo no mesmo lugar que fora tampado, aquele por onde as pessoas passam, além de outros pequenos buracos espalhados por aí. Agora já era demais. O tempo fechou em pleno verão catarinense e todos começaram a rezar. Dessa vez estava decidido: Segunda-feira vou levar e ver se a moça do “pet” me ajuda no processo de doação, disse a Dona em sofrimento profundo. É preferível isso a uma convivência em desarmonia, nós queríamos, mas não vai dá... enfim.

Na manhã seguinte Gaia mostrou-se um tanto triste, com olhar ora distante ora fugidio, recolhida no pufe em silenciosos lamentos e, por vezes, cobria a cabeça com a patinha branca, fechando-se. Tal ensimesmamento contagiava a todos. Quando se aventurava em pequenos passeios e via o Dono aproximar-se corria de volta para o pufe. A Dona voltou da caminhada matinal na praia com os olhos vermelhos. As mulheres são assim, sensíveis. Confessou que chorou porque estava com muita pena da bichinha e perguntava-se, apreensiva, onde ela vai ter esse conforto e esses cuidados. Mas... E jurou não tentar nunca mais.

Da nossa parte, também, lamentamos e até cogitamos trazer a cadelinha para Brasília. Sim, ela se mostrava dócil e não ficaria tão grande como um Golden. Ao ouvir isso a Dona dispôs-se a financiar a viagem se fosse preciso. Pensamos... Pensamos... Ok, era delírio. Sabia-me envolta na confusão de resquícios de culpa e ainda desejosa por um bichinho. Além disso, observando a Dona, terna e doce, intuímos que ela saberia o que fazer.

Na despedida estava nos braços da Dona dando tchau, mas a decisão estava tomada e o destino incerto.

Passados alguns dias algo aconteceu porque Gaia apareceu sorridente e esparramada em cores postada em vários perfis nas redes sociais. Sabe-se que, em todos os reinos precisa-se de tempo e... ternura.

Você é uma linda, Gaia! Vida longa e feliz.

Em janeiro de 2015