segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Homens da minha Vida






Dos filhos da minha mãe os primeiros nasceram homens: Pedro e João. Quando cheguei, a última dos dez, eles já formavam um par de irmãos fortes e trabalhadores tomando conta da família grande. Do Pedro herdei a imagem do facão e o medo; do João herdei as voltas de bicicleta e o gosto pela liberdade. Vivo entre o medo de errar e o prazer da conquista.

O João sempre foi mais atrevido. Morreu porque não conseguiu driblar o veneno da cascavel enquanto labutava da plantação de arroz. Há uma dor que não passa com a perda desse irmão. Todos acreditam que ele foi vítima da mulher que não deixou um curandeiro acudi-lo quando esse era o único recurso naquele fim de mundo. A mulher havia se convertido a uma religião segundo a qual só quem cura é a Palavra. A palavra não salvou meu irmão. Estava com trinta e quatro anos, um filho pequeno e outro a caminho. Nasceu da mulher o segundo e colocaram o nome João, também, como o pai. Garoto inteligente desenvolveu uma esquizofrenia com apenas dezessete anos. Hoje é cuidado pela mãe e está com mais de quarenta.

A verdade é que, dizem, se esse irmão estivesse vivo nos idos dos anos teria morrido de desgosto por saber da irmã caçula a se embrenhar por tortuosos caminhos de perdição na cidade grande. Entre os dois irmãos ele era, enfim, o guardião da moral das irmãs donzelas naquela cidadezinha miserável de gente fofoqueira que ficava, não fica mais porque agora a televisão os entretém, ficava nos finais de tarde sentada nas calçadas falando verdades e mentiras de quem passa e de quem não passa em frente daquelas portas. Para guardar a tal moral ele seguia os costumes do lugar e, dando-se a autoridade de pai, podia até espancar. Vi uma das irmãs sangrar na altura do zíper do vestido depois de uma surra que ele foi obrigado a dar para corrigir o mau costume que ela tinha de ficar na praça até tarde procurando não se sabe o que e, ainda por cima, se esconder na casa da Margarida, outra libertina. Foi a irmã mais velha quem descobriu e denunciou revestido-se, também, de zelo e uma dosezinha de ruindade. Aí não teve jeito apanhou com a bainha do facão até ficar prostrada no chão da segunda cozinha da casa. Ainda hoje a irmã espancada assume a condição de vítima contando suas histórias, e rimos juntos em festas envolvendo a terceira geração da família. Todo mundo entendia – valha-me Deus - que algumas brutalidades se fazem necessárias porque só assim se constrói uma personalidade temente e ordeira. Esse irmão, o João, como disse, tinha essa missão, coitado, de preservar a moral das irmãs até que arrumassem marido ou tomassem algum rumo decente na vida.

Antes de casar com a prima mal falada ele mantinha encontros um tanto clandestinos com a Maria, uma mulher quase negra que se perdera em uma moita qualquer sabe-se lá com quem. Ainda guardo vivinha a imagem da casa da Maria. Bem feitinha com folhas da palmeira de coco babaçu. Quando eu ia lá era tratada como uma rainha e havia sempre alguma comidinha gostosa para a irmã caçula do João. Vejo isso quase como um sonho. A tal mulher, a Maria, vivia sozinha porque havia “se perdido” e família que se preza não aceitava mulher nenhuma que fez aquilo antes de casar. A casinha dela ficava próxima da morada dos pais, mas distante o bastante para expressar rompimentos de causa moral. Ainda criança eu não entendia aquilo, mas não fazia pergunta, era como se houvesse algo implícito naquele afastamento e criança não precisa ficar sabendo dessas coisas. Era uma pessoa boa, a Maria. Podia plantar e cultivar o próprio alimento nas terras da família, mas mantinha-se separada com sua própria cozinha, panelas e quarto. Principalmente quarto. Meu irmão, solteiro, “frequentava” a casa da Maria e nós a tínhamos como uma amiga desde que se mantivesse no seu lugar de “mulher da vida”. Era tudo envolto por algo que não podia ser revelado, mas precisava ser tolerado porque homem é homem, afinal. Sabe-se que durante muito tempo o João viveu esse romance, sabe-se, também, que ele gostava muito dela, mas, sabia-se que ele jamais poderia tomá-la como esposa. Essa era a regra.

Foi um irmão muito querido. Ganhei dele a primeira boneca de borracha com olhos que abrem, quando tinha nove anos. Até então todas as minhas bonecas eram de espiga de milho ou de pano. Foi ele, também, quem mandou que me arrumassem para levar e tirar a primeira fotografia. Saí, assim, com carinha torta usando um vestido de retalho, uma sandalinha esquisita e cachos no cabelo. Vivo dizendo que vou copiar essa única foto e eternizar no mundo virtual.

Um dia, eu já adolescente e com os hormônios em permanente euforia, fui surpreendida por ele parando a bicicleta ao lado do banco da praça onde estava com o meu primeiro namorado. Ninguém disse nada, levantei do banco, andei por um chão que não existia e sentei na garupa da bicicleta. Vi que estava furioso, mas confiava que não faria comigo o que fizera com a outra irmã. Sei até hoje o quanto aquele irmão gostava de mim. Foi dele o único colo do qual me lembro nos tempos de infância. Já grandinha querendo ser moça ele colocava-me sobre as suas pernas quando havia visitas numa demonstração de afeto e proteção. Eu morria de vergonha.

Na última sequência de terapia individual que fiz esse irmão foi personagem numa tentativa de recuperar o valor do masculino na constituição da minha identidade. Nas doloridas sessões insistia em afirmar para a psicóloga que o melhor homem da minha vida, o mais decente e verdadeiro era gay. E era! Foi tentando desconstruir essa crença que esse irmão, com sua presença forte e protetora, entrou na cena de cura.

Isso ainda me emociona muito.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

QUEIMARAM O MUSEU

Museu Nacional do Rio pegou fogo na noite de domingo

Queimaram o Museu.
Lá, na Quinta. Queimaram o Museu.

Daqui, com o olhar esfumaçado vejo como arde no colorido do fogo. Parece uma pintura andando feliz pelas alamedas da Quinta.
Mas, tudo nele se contorce em dor: as múmias, os esqueletos, a Filosofia da Arte, a coroa do Rei, o céu azul do quadro torto, a Gramática, as garatujas febris das crianças do Reino. Voam ou caem, mortos.

Com dor de peito sangrando vejo as chamas lamberem livros raros para dali tirarem os segredos guardados dentro das capas rotas. Palavras quentes tentam fugir correndo pelas escadas, voando pelas janelas. As chamas perseguem, dançam e riem crepitantes com poder de fogo. Nada as detém.
Há um corre, corre de vidas antigas. Entreolham-se intrigadas buscando saídas e derretem ante as portas fechadas.

A desenvoltura do Abandono confere se está tudo em ordem.
O Museu morreu.
Agora é silêncio.