segunda-feira, 26 de novembro de 2018

SILÊNCIOS DA SEMANA





Silêncios da semana

As segundas desperta sob fluxos de memória recente. Espreguiça-se e vive o silêncio dos que vão para o trabalho arrastando-se sob os laços das gravatas, das agendas e das ressacas. Ao toque dos saltos finos sobre as calçadas,. Segunda é o mais silencioso dos dias, pois que, traz recordações. Desapega-se com cuidado para não se ferir em coisas que lhe são caras.

As terças o silêncio de promessas não cumpridas. Do olhar furtivo percorrendo fazes do inacabado. Do jardim para regar, do voo rasante de pássaros felizes, dos horizontes bêbados. É nas terças que observa em silêncio a formação das nascentes e a cor das borboletas. É dia de se nutrir com o sabor do que vive em volta.

As quartas o silêncio dos carros inabitados com seus vidros escuros circulando em estado nômade. São órfãos autômatos cruzando-se em irracionalidades. O exasperante e aconchegante barulho das ruas. O silêncio das mãos que massageiam deixando rastros de maciez na pele e histórias de histórias de histórias de quem ouve muitas histórias. O silêncio do almoço solitário entre olhares furtivos de quem não quer se comprometer com olhares. E segue pela longa quarta-feira de cidade grande para o empório comprar tomates vermelhos, folhas verdes, mel. Não conversa, apenas acena, responde, clica senhas em códigos, números, letras.

As quintas o silêncio de mais promessas. Levantar mais cedo para segurar o sol quando ele estiver nascendo e embalar o sol pelo resto do dia. Promessa de lavar o carro carregando água no balde e deixar o carro limpinho, aspirar por dentro e soprar os vidros. Arrumar as gavetas para retirar roupas que não usa mais. Promete, também, que ao final do dia vai andar usando tênis e calça marrom. E jura, jura que vai ficar só um pouquinho deitada no sofá, em frente a TV, vendo algum programa idiota daqueles que só os desocupados assistem. E cochila em teimosias infantis. Hora de vadiar. À noite voltará a escrever, promete.

Sexta é dia de silêncios mágicos carregados em suavidades de incensos, postura zen e a profundidade na busca do eu. Medita. Depois medita enquanto anda pelo jardim e descobre que os cupins estão, outra vez, fazendo morada. De olhos fechados inspira, expira, inspira, expira em visualizações aos toques dos sinos de vento. Abre o livro no capítulo tal e conversa com a poesia em rimas desencontradas. Embriaga-se de palavras e decide, entontecida, ser personagem. Deixa-se embalar na brisa silenciosa das sextas-feiras. Num afã de rebeldia abandona o banco de madeira e vai andar por aí. Por aí existem vidas que se transformam e é preciso colhê-las agora antes que o próximo instante as leve em regozijos de extrema liberdade.


O silêncio de sábado e de domingo tem a sua própria página.
                                                   


sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Manhã de Sol




É manhã. Manhã de sol.
Choveu ontem. Choveu nos vários antes de ontem.
Chuva boa, generosa, forte. Chuva com ventos, relâmpagos e trovoadas.
Aguaceiro em fartura para molhar tudo.
Mas hoje é manhã brilhante de sol.
Quero comer esta manhã.
Só por hoje comer esta manhã.
Engolir o brilho reflexo da superfície lisinha das folhas.
E amar.
Um amor antropofágico que mastiga e engole pássaros que miram em voos rasantes e atravessam esse corpo faminto de manhãs de sol.
Comer lagartixas em contrição dizendo sim.
Comer pares de borboletas dançarinas em garfadas de alegria.
Quero comer sozinha, egoísta e malvada os trezentos e sessenta graus dessa manhã tão clarinha e doce como só uma manhã de sol consegue.
Uma manhã que dura as vinte e quatro horas da tarde e da noite.
Amanhã... 
Amanhã pode chover.


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Homens da minha Vida






Dos filhos da minha mãe os primeiros nasceram homens: Pedro e João. Quando cheguei, a última dos dez, eles já formavam um par de irmãos fortes e trabalhadores tomando conta da família grande. Do Pedro herdei a imagem do facão e o medo; do João herdei as voltas de bicicleta e o gosto pela liberdade. Vivo entre o medo de errar e o prazer da conquista.

O João sempre foi mais atrevido. Morreu porque não conseguiu driblar o veneno da cascavel enquanto labutava da plantação de arroz. Há uma dor que não passa com a perda desse irmão. Todos acreditam que ele foi vítima da mulher que não deixou um curandeiro acudi-lo quando esse era o único recurso naquele fim de mundo. A mulher havia se convertido a uma religião segundo a qual só quem cura é a Palavra. A palavra não salvou meu irmão. Estava com trinta e quatro anos, um filho pequeno e outro a caminho. Nasceu da mulher o segundo e colocaram o nome João, também, como o pai. Garoto inteligente desenvolveu uma esquizofrenia com apenas dezessete anos. Hoje é cuidado pela mãe e está com mais de quarenta.

A verdade é que, dizem, se esse irmão estivesse vivo nos idos dos anos teria morrido de desgosto por saber da irmã caçula a se embrenhar por tortuosos caminhos de perdição na cidade grande. Entre os dois irmãos ele era, enfim, o guardião da moral das irmãs donzelas naquela cidadezinha miserável de gente fofoqueira que ficava, não fica mais porque agora a televisão os entretém, ficava nos finais de tarde sentada nas calçadas falando verdades e mentiras de quem passa e de quem não passa em frente daquelas portas. Para guardar a tal moral ele seguia os costumes do lugar e, dando-se a autoridade de pai, podia até espancar. Vi uma das irmãs sangrar na altura do zíper do vestido depois de uma surra que ele foi obrigado a dar para corrigir o mau costume que ela tinha de ficar na praça até tarde procurando não se sabe o que e, ainda por cima, se esconder na casa da Margarida, outra libertina. Foi a irmã mais velha quem descobriu e denunciou revestido-se, também, de zelo e uma dosezinha de ruindade. Aí não teve jeito apanhou com a bainha do facão até ficar prostrada no chão da segunda cozinha da casa. Ainda hoje a irmã espancada assume a condição de vítima contando suas histórias, e rimos juntos em festas envolvendo a terceira geração da família. Todo mundo entendia – valha-me Deus - que algumas brutalidades se fazem necessárias porque só assim se constrói uma personalidade temente e ordeira. Esse irmão, o João, como disse, tinha essa missão, coitado, de preservar a moral das irmãs até que arrumassem marido ou tomassem algum rumo decente na vida.

Antes de casar com a prima mal falada ele mantinha encontros um tanto clandestinos com a Maria, uma mulher quase negra que se perdera em uma moita qualquer sabe-se lá com quem. Ainda guardo vivinha a imagem da casa da Maria. Bem feitinha com folhas da palmeira de coco babaçu. Quando eu ia lá era tratada como uma rainha e havia sempre alguma comidinha gostosa para a irmã caçula do João. Vejo isso quase como um sonho. A tal mulher, a Maria, vivia sozinha porque havia “se perdido” e família que se preza não aceitava mulher nenhuma que fez aquilo antes de casar. A casinha dela ficava próxima da morada dos pais, mas distante o bastante para expressar rompimentos de causa moral. Ainda criança eu não entendia aquilo, mas não fazia pergunta, era como se houvesse algo implícito naquele afastamento e criança não precisa ficar sabendo dessas coisas. Era uma pessoa boa, a Maria. Podia plantar e cultivar o próprio alimento nas terras da família, mas mantinha-se separada com sua própria cozinha, panelas e quarto. Principalmente quarto. Meu irmão, solteiro, “frequentava” a casa da Maria e nós a tínhamos como uma amiga desde que se mantivesse no seu lugar de “mulher da vida”. Era tudo envolto por algo que não podia ser revelado, mas precisava ser tolerado porque homem é homem, afinal. Sabe-se que durante muito tempo o João viveu esse romance, sabe-se, também, que ele gostava muito dela, mas, sabia-se que ele jamais poderia tomá-la como esposa. Essa era a regra.

Foi um irmão muito querido. Ganhei dele a primeira boneca de borracha com olhos que abrem, quando tinha nove anos. Até então todas as minhas bonecas eram de espiga de milho ou de pano. Foi ele, também, quem mandou que me arrumassem para levar e tirar a primeira fotografia. Saí, assim, com carinha torta usando um vestido de retalho, uma sandalinha esquisita e cachos no cabelo. Vivo dizendo que vou copiar essa única foto e eternizar no mundo virtual.

Um dia, eu já adolescente e com os hormônios em permanente euforia, fui surpreendida por ele parando a bicicleta ao lado do banco da praça onde estava com o meu primeiro namorado. Ninguém disse nada, levantei do banco, andei por um chão que não existia e sentei na garupa da bicicleta. Vi que estava furioso, mas confiava que não faria comigo o que fizera com a outra irmã. Sei até hoje o quanto aquele irmão gostava de mim. Foi dele o único colo do qual me lembro nos tempos de infância. Já grandinha querendo ser moça ele colocava-me sobre as suas pernas quando havia visitas numa demonstração de afeto e proteção. Eu morria de vergonha.

Na última sequência de terapia individual que fiz esse irmão foi personagem numa tentativa de recuperar o valor do masculino na constituição da minha identidade. Nas doloridas sessões insistia em afirmar para a psicóloga que o melhor homem da minha vida, o mais decente e verdadeiro era gay. E era! Foi tentando desconstruir essa crença que esse irmão, com sua presença forte e protetora, entrou na cena de cura.

Isso ainda me emociona muito.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

QUEIMARAM O MUSEU

Museu Nacional do Rio pegou fogo na noite de domingo

Queimaram o Museu.
Lá, na Quinta. Queimaram o Museu.

Daqui, com o olhar esfumaçado vejo como arde no colorido do fogo. Parece uma pintura andando feliz pelas alamedas da Quinta.
Mas, tudo nele se contorce em dor: as múmias, os esqueletos, a Filosofia da Arte, a coroa do Rei, o céu azul do quadro torto, a Gramática, as garatujas febris das crianças do Reino. Voam ou caem, mortos.

Com dor de peito sangrando vejo as chamas lamberem livros raros para dali tirarem os segredos guardados dentro das capas rotas. Palavras quentes tentam fugir correndo pelas escadas, voando pelas janelas. As chamas perseguem, dançam e riem crepitantes com poder de fogo. Nada as detém.
Há um corre, corre de vidas antigas. Entreolham-se intrigadas buscando saídas e derretem ante as portas fechadas.

A desenvoltura do Abandono confere se está tudo em ordem.
O Museu morreu.
Agora é silêncio.

sábado, 10 de março de 2018

GAIA




Fomos recebidos em um ensolarado início de tarde. A dona da casa chegou até nós levando no colo uma cachorrinha pequena e magra. Sorridente, apresentou-nos dizendo que havia mais um membro na família. Cansada e com muito calor sorri gentil e ficamos por ali mesmo conversando e apreciando o lugar. Estávamos lá para uma breve temporada na casa de praia do casal.

São lindos e queridos, mas estou aqui para falar da cadelinha. Hoje vi fotos dela e resolvi aceitar o chamado para escrever. O nome dela é Gaia. Nos primeiros dias eu insistia em entender que o nome da cachorra era Maia. Sei lá por que!
Como parte das apresentações foi dito que estava abandonada; de rua; no corredor da morte; magrinha e feia; desejávamos há muito tempo e o destino nos reservou Gaia; tinha que ser ela, estava escrito; agora está assim, linda, em apenas cinco dias aqui em casa; deve ter uns três meses, não se sabe direito. Vai ficar mais tempo aqui, mas vamos levá-la para o apartamento onde, sei, ficará educadinha e muito obedientezinha, já dá pra ver. Agora que vou aposentar ter um cachorro, que era um desejo antigo, é tudo de bom!

Gaia viveu o deleite dos primeiros dias no colo de um jovem casal que estava de partida logo que chegamos. Até ai, uma lady. Quando o casal foi embora Gaia mostrou-se acabrunhada, decerto, pressentindo a falta do colo, mas, feliz, finalmente teria um lar. No dia seguinte começou com peraltices e desobediências rompendo limites e mostrando a que veio. Atribuiu-se a recaída aos maus hábitos da convivência farta em carinho e ausência de freios, mas agora começaria o processo de aprendizagem.

Da minha parte relembrei com uma frequência acima dos meus planos a minha experiência com um cachorro e contei muitas histórias: do quanto tentei durante longos meses; do quanto investi; do quanto fui e voltei em decisões de quero muito, não quero mais; do quanto fui feliz com ele e o quanto rimos juntos; das patas enlameadas na parede branquinha; dos carrapatos e das lesmas grudadas no longo pelo de Golden Retriever e do quanto ele gostava de torturar as lagartas do quintal; das margaridas brancas destruídas; dos buracos pelo chão nativo onde meses depois se encontrava ossos enterrados para dias vindouros; das vezes que adentrava pela casa com o seu corpão derrubando tudo em tom de brincadeira; da resistência em entrar na casinha de paredes de tijolos que mandei fazer com carinho de mãe. E de muito mais!

Disse, ainda, da minha incompetência para dar tanto amor quando estou apegada à ordem e quietude de jardins floridos e paredes brancas. Ou que não consigo me fazer presente em linguagens que não seja o palavreado dos humanos e nessa confusão me torno refém de outros animais. Disse, também, da imensa dor que senti quando redigi o texto de doação para divulgar entre os amigos declarando a minha incapacidade e implorando por uma família onde houvesse criança para brincar com o Uran. E que mantenho no meu mural fotos dele e marcas eternas das suas unhas pelas minhas pernas e, claro, doces lembranças.

Gaia é uma vira-latas de pelo macio e olhar terno. Na primeira tarde que voltamos da praia encontramos buracos pelo belo jardim de terra fofa e flores miúdas. O Dono reclamou e chamou Gaia para ensinar que aquilo não se faz levando-a a encostar o focinho no buraco fresquinho para cheirar a terra molhada e que isso não se repita. Percebeu-se ali uma lição de pai amoroso instituindo limites necessários. O buraco foi fechado e Gaia correu desconfiada com o rabo entre as pernas para refugiar-se no pufe forrado especialmente para ela. Quem forrou foi a Dona usando uma de suas coloridas mantas. Era, também, a Dona quem falava doce e carinhosamente, aconchegava, colocava panos quentes, aparava todas as pontas, ponderava, apostava em Gaia oferecendo-lhe do bom e do melhor em carinho e materialidade. Via-se que estava feliz com a cachorrinha.

Aos poucos Gaia foi entendendo que não podia entrar nos quartos, nem na sala, na cozinha também não; não podia latir à toa nem muito alto; também não podia espantar os passarinhos; e fazer necessidades evacuativas no jardim era visto como uma prática indesejada que exigia dos donos começarem cedo a limpar tudo levando junto uma pequena dose de mau humor. Buracos no jardim, nem pensar! Como todo enlace havia exigências e concessões. Nesse começo mais exigências que concessões. Assim, Gaia foi ouvindo muitos nãos e experimentando os limites da convivência com os humanos em aprendizagens do “manda quem pode obedece quem tem juízo”. Havia, contudo, no ar uma suspeita e o momento era de muita vulnerabilidade para adotantes e adotada.

Quando voltamos da praia na tarde do outro dia Gaia havia cavado mais fundo no mesmo lugar que fora tampado, aquele por onde as pessoas passam, além de outros pequenos buracos espalhados por aí. Agora já era demais. O tempo fechou em pleno verão catarinense e todos começaram a rezar. Dessa vez estava decidido: Segunda-feira vou levar e ver se a moça do “pet” me ajuda no processo de doação, disse a Dona em sofrimento profundo. É preferível isso a uma convivência em desarmonia, nós queríamos, mas não vai dá... enfim.

Na manhã seguinte Gaia mostrou-se um tanto triste, com olhar ora distante ora fugidio, recolhida no pufe em silenciosos lamentos e, por vezes, cobria a cabeça com a patinha branca, fechando-se. Tal ensimesmamento contagiava a todos. Quando se aventurava em pequenos passeios e via o Dono aproximar-se corria de volta para o pufe. A Dona voltou da caminhada matinal na praia com os olhos vermelhos. As mulheres são assim, sensíveis. Confessou que chorou porque estava com muita pena da bichinha e perguntava-se, apreensiva, onde ela vai ter esse conforto e esses cuidados. Mas... E jurou não tentar nunca mais.

Da nossa parte, também, lamentamos e até cogitamos trazer a cadelinha para Brasília. Sim, ela se mostrava dócil e não ficaria tão grande como um Golden. Ao ouvir isso a Dona dispôs-se a financiar a viagem se fosse preciso. Pensamos... Pensamos... Ok, era delírio. Sabia-me envolta na confusão de resquícios de culpa e ainda desejosa por um bichinho. Além disso, observando a Dona, terna e doce, intuímos que ela saberia o que fazer.

Na despedida estava nos braços da Dona dando tchau, mas a decisão estava tomada e o destino incerto.

Passados alguns dias algo aconteceu porque Gaia apareceu sorridente e esparramada em cores postada em vários perfis nas redes sociais. Sabe-se que, em todos os reinos precisa-se de tempo e... ternura.

Você é uma linda, Gaia! Vida longa e feliz.

Em janeiro de 2015

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Era uma vez...





Era uma vez uma menina que veio depois.
Chegou depois que todos já estavam lá e disse: cheguei.
Os pés que vieram descalços ficaram assim, descalços por muitos anos pisando nas areias e folhas dos quintais.
Os cachos dos cabelos eram dourados e finos como os de uma espiga de milho. A irmã mais velha queria ter o cabelo assim.
Um dia acordou se sentido uma espiga madura e começou a debulhar-se correndo atrás das galinhas.

Andava pelas roças em passos muito largos para suas pernas miúdas, atrás de adultos apressados. Pressa para plantar, ver crescer, colher e alimentar. Atentar-se para os tocos, galhos, barulhinhos sutis e o cheiro das coisas. Esgueirar-se por caminhos estreitos sentindo o sabor do mistério.
Tudo na mesma experiência.

Atenta, porque tinha medo.
Medo de lagarta,
de cobra,
de gente escondida atrás das moitas,
de bicho feio,
de não chegar primeiro,
de não haver mais melancias no pé,
da água do açude secar,
da mãe não voltar,
do mau humor dos adultos,
de sumir na roça de milho,
do chifre das cabras,
de vaca parida.
Medo do fantasma que aparecia no Alto da Sepultura nas noites de lua cheia. O fantasma vinha montado em cavalo que avançava soltando luz de fogo para todos os lados. Mas é um fantasma bonzinho, diziam para as crianças de olhos arregalados.

Medo de o dia acabar.

A tarde entardecia com sonoras cantigas que adentravam pelo breu das noites. Primeiro os pássaros aninhando-se em deliciosas carícias. As corujas, os sapos, o movimento das estrelas. Do fogão a lenha um crepitar melancólico no preparo da última refeição do dia. E todos olhavam para a mesma direção seduzidos pelo encantamento do fogo.

A menina silenciava em contrição e respeito.

O amor à terra, ao fogo, ao vento, ao silêncio vem desse tempo.
O amor às águas também, de quando saltitava nas poças que a chuva deixava.
Foi no espelho das poças d’água que viu refletido o mapa que desenharia na composição do porvir.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Vai



Vai

Porque agora quero ficar só.
É que sinto falta de mim.
Careço de silêncio e espaços vazios quando sinto falta de mim.
Sei que estou cheia, grávida.
Excedo e transbordo.
Por isso suplico que vás.

Preciso olhar-me.
Há cantos da minha existência estreitos e obscuros que quero acariciar.
Por isso... Vai.
Quero cortar frutas, legumes, tomates vermelhos.
Cortar cebolas e chorar.
Misturar-me com sangue de tomates e seiva de cebolas brancas.

Vai
Há, lá fora, folhas secas no chão e pássaros tristes.
Todos esperam.
Vou colher ervas. Oferecer-me chás. Sentar em varandas e meditar.

Vai.
Porque há livros abertos e um poema que iniciei.
Há mandalas interrompidas.
Coisas fora do lugar.
Preciso fazer sobrancelhas e as unhas dos pés.
Quero ocupar-me com um ar só meu para nele bailar.
Por isso... Vai.

Preciso de um pouco de tristeza e com ela mergulhar por lugares sombrios.
Lugares onde só entra um e a sua solidão.

Quando te peço que vás... entendas.
O lugar onde quero ficar não te cabe.
E não cabe o teu amor.

Só por um tempo... preciso que tu vás.

Amélia em maio (2016)