Fomos recebidos em um
ensolarado início de tarde. A dona da casa chegou até nós levando no colo uma
cachorrinha pequena e magra. Sorridente, apresentou-nos dizendo que havia mais
um membro na família. Cansada e com muito calor sorri gentil e ficamos por ali
mesmo conversando e apreciando o lugar. Estávamos lá para uma
breve temporada na casa de praia do casal.
São lindos e queridos,
mas estou aqui para falar da cadelinha. Hoje vi fotos dela e resolvi aceitar o
chamado para escrever. O nome dela é Gaia. Nos primeiros dias eu insistia em
entender que o nome da cachorra era Maia. Sei lá por que!
Como parte das
apresentações foi dito que estava abandonada; de rua; no corredor da morte;
magrinha e feia; desejávamos há muito tempo e o destino nos reservou Gaia;
tinha que ser ela, estava escrito; agora está assim, linda, em apenas cinco
dias aqui em casa; deve ter uns três meses, não se sabe direito. Vai ficar mais
tempo aqui, mas vamos levá-la para o apartamento onde, sei, ficará educadinha e
muito obedientezinha, já dá pra ver. Agora que vou aposentar ter um cachorro,
que era um desejo antigo, é tudo de bom!
Gaia viveu o deleite dos
primeiros dias no colo de um jovem casal que estava de partida logo que
chegamos. Até ai, uma lady. Quando o casal foi embora Gaia mostrou-se
acabrunhada, decerto, pressentindo a falta do colo, mas, feliz, finalmente
teria um lar. No dia seguinte começou com peraltices e desobediências rompendo
limites e mostrando a que veio. Atribuiu-se a recaída aos maus hábitos da
convivência farta em carinho e ausência de freios, mas agora começaria o
processo de aprendizagem.
Da minha parte
relembrei com uma frequência acima dos meus planos a minha experiência com um
cachorro e contei muitas histórias: do quanto tentei durante longos meses; do
quanto investi; do quanto fui e voltei em decisões de quero muito, não quero
mais; do quanto fui feliz com ele e o quanto rimos juntos; das patas enlameadas
na parede branquinha; dos carrapatos e das lesmas grudadas no longo pelo de
Golden Retriever e do quanto ele gostava de torturar as lagartas do quintal;
das margaridas brancas destruídas; dos buracos pelo chão nativo onde meses
depois se encontrava ossos enterrados para dias vindouros; das vezes que
adentrava pela casa com o seu corpão derrubando tudo em tom de brincadeira; da
resistência em entrar na casinha de paredes de tijolos que mandei fazer com
carinho de mãe. E de muito mais!
Disse, ainda, da minha
incompetência para dar tanto amor quando estou apegada à ordem e quietude de
jardins floridos e paredes brancas. Ou que não consigo me fazer presente em
linguagens que não seja o palavreado dos humanos e nessa confusão me torno
refém de outros animais. Disse, também, da imensa dor que senti quando redigi o
texto de doação para divulgar entre os amigos declarando a minha incapacidade e
implorando por uma família onde houvesse criança para brincar com o Uran. E que
mantenho no meu mural fotos dele e marcas eternas das suas unhas pelas minhas
pernas e, claro, doces lembranças.
Gaia é uma vira-latas
de pelo macio e olhar terno. Na primeira tarde que voltamos da praia
encontramos buracos pelo belo jardim de terra fofa e flores miúdas. O Dono
reclamou e chamou Gaia para ensinar que aquilo não se faz levando-a a encostar
o focinho no buraco fresquinho para cheirar a terra molhada e que isso não se
repita. Percebeu-se ali uma lição de pai amoroso instituindo limites
necessários. O buraco foi fechado e Gaia correu desconfiada com o rabo entre as
pernas para refugiar-se no pufe forrado especialmente para ela. Quem forrou foi
a Dona usando uma de suas coloridas mantas. Era, também, a Dona quem falava
doce e carinhosamente, aconchegava, colocava panos quentes, aparava todas as
pontas, ponderava, apostava em Gaia oferecendo-lhe do bom e do melhor em
carinho e materialidade. Via-se que estava feliz com a cachorrinha.
Aos poucos Gaia foi
entendendo que não podia entrar nos quartos, nem na sala, na cozinha também
não; não podia latir à toa nem muito alto; também não podia espantar os
passarinhos; e fazer necessidades evacuativas no jardim era visto como uma
prática indesejada que exigia dos donos começarem cedo a limpar tudo levando
junto uma pequena dose de mau humor. Buracos no jardim, nem pensar! Como todo
enlace havia exigências e concessões. Nesse começo mais exigências que
concessões. Assim, Gaia foi ouvindo muitos nãos e experimentando os limites da
convivência com os humanos em aprendizagens do “manda quem pode obedece quem
tem juízo”. Havia, contudo, no ar uma suspeita e o momento era de muita vulnerabilidade
para adotantes e adotada.
Quando voltamos da
praia na tarde do outro dia Gaia havia cavado mais fundo no mesmo lugar que fora
tampado, aquele por onde as pessoas passam, além de outros pequenos buracos
espalhados por aí. Agora já era demais. O tempo fechou em pleno verão
catarinense e todos começaram a rezar. Dessa vez estava decidido: Segunda-feira
vou levar e ver se a moça do “pet” me ajuda no processo de doação, disse a Dona
em sofrimento profundo. É preferível isso a uma convivência em desarmonia, nós
queríamos, mas não vai dá... enfim.
Na manhã seguinte Gaia
mostrou-se um tanto triste, com olhar ora distante ora fugidio, recolhida no pufe em
silenciosos lamentos e, por vezes, cobria a cabeça com a patinha branca,
fechando-se. Tal ensimesmamento contagiava a todos. Quando se aventurava em
pequenos passeios e via o Dono aproximar-se corria de volta para o pufe. A Dona
voltou da caminhada matinal na praia com os olhos vermelhos. As mulheres são
assim, sensíveis. Confessou que chorou porque estava com muita pena da bichinha
e perguntava-se, apreensiva, onde ela vai ter esse conforto e esses cuidados.
Mas... E jurou não tentar nunca mais.
Da nossa parte,
também, lamentamos e até cogitamos trazer a cadelinha para Brasília. Sim, ela
se mostrava dócil e não ficaria tão grande como um Golden. Ao ouvir isso a Dona
dispôs-se a financiar a viagem se fosse preciso. Pensamos... Pensamos... Ok,
era delírio. Sabia-me envolta na confusão de resquícios de culpa e ainda desejosa por um
bichinho. Além disso, observando a Dona, terna e doce, intuímos que ela saberia
o que fazer.
Na despedida estava
nos braços da Dona dando tchau, mas a decisão estava tomada e o destino incerto.
Passados alguns dias algo aconteceu porque
Gaia apareceu sorridente e esparramada em cores postada em vários perfis nas redes
sociais. Sabe-se que, em todos os reinos precisa-se de tempo e... ternura.
Você
é uma linda, Gaia! Vida longa e feliz.
Em janeiro
de 2015