Quando se viu
sozinha no quarto, sorriu. Sentada na cama fez a mão deslizar suavemente pela
colcha de tecido vermelho. Era um gesto terno de quem acaricia doces lembranças.
Queria abraçar aquele lugar e dizer: voltei.
Por longo tempo
ficou refletindo-se em imagens de espelhos múltiplos. Muitas e fugidias
imagens. Prendeu-se naquele tempo de presente e passado fundidos em lembranças. Cada
pedacinho do lugar guardava o eco da dor que em noites sem fim a fez
contorcer-se, arrastar as entranhas expostas, e gemer. Respirava fundo
afastando-se para deixar entrar aquele imenso mar por todo o corpo. Era, ela sabia,
uma despedida.
Mas desejava
estar inteira sorvendo em pequenos goles aquele desenlace. Poderia viver isso
sem essa entrega, simplesmente fingindo que nada acontecera. Mas não era isso o
que ela queria.
Depois do banho vestiu-se
com elegância sóbria, fechou a porta do quarto e saiu. Pelo corredor foi
ouvindo os próprios passos que ecoavam em silêncios de lugares vazios e
côncavos. Parou por um instante para ouvir e ouvir-se na certeza da
cumplicidade compartilhada. Naquele lugar, o silêncio de uma dor guardada fora
o seu mais fiel companheiro. Chovia. Deixou a chave na recepção e andou pela
calçada molhada. A chuva fina batia-lhe no rosto e fazia brilhar o lugar que
ela pisava. Cenários, cheiros, vitrines, pessoas. As luzes do lugar. Andava
devagar porque não queria chegar logo. Pisar naquele chão era como retomar um sonho
que fora interrompido muitas vezes e ver perspectivas que outrora se esconderam
dela.
Em frente ao
prédio reformado caminhou mais lentamente preenchendo cada segundo com
significados de um passado agonizante. Seguiu pela escada. Observou os quadros
e teve a percepção estranha de que somente ali alguma coisa havia mudado. Com
um vento a soprar-lhe, lembrou-se de eventos marcantes. Parou um pouco para
pensar e entender. Fazer esse percurso e outra vez adentrar por esse passado
colocando os pés num chão presente.
Fora convidada
para realizar um trabalho temático junto a um grupo de estudantes. Depois do
evento voltou para o hotel. Pediu que servissem o jantar no quarto. Enquanto
esperava, deitada de bruços, assistiu pedaços de um filme na TV. Tudo estava
bem e ela sentia no espírito um conforto bom. O ritual do jantar, íntimo e só,
era para ela a expressão da liberdade que buscava. Naquela noite, naquele
lugar.
Foi dormir sem
chorar.
Acordou cedo
para apreciar a cidade. Olhou a vista pela janela do quarto andar num ângulo
que, em contemplações de outrora, misturava-se à sua dor numa fusão de
contornos indefinidos. O sol dava a tudo novas tonalidades, movendo-se em
inquietas nuances para desenhar, ao longe, um horizonte novo. Tomou um banho
prolongado desses que a água atravessa, transparente e mole, os muitos lugares
do corpo, da alma, de lembranças e de velhos sentidos que agora precisam ceder
desmoronando-se em irresistíveis dissolvências. Usando uma calça jeans e uma
camisa solta desceu pelas escadas para a sala do café.
Empurrou devagar
a porta de vidro que dá acesso ao restaurante. Com um olhar circular percebeu
que as coisas estavam fora do lugar. Aproximou-se de uma das muitas mesas
vazias e sentou-se para a refeição. Mas não iria fazer isso logo. Queria ficar
um pouco ali, sentindo-se. Sentir-se e em seguida dissipar-se no que ela era
naquele sentir e assim poder se desvencilhar de si mesma numa atitude sem nome.
Mas queria fazer isso com a calma da ternura e com o cuidado de quem não quer desmanchar
nada de um jeito que não seja leve. Ir tirando de cada vez pedacinhos daquela
camada de lembranças. Era um filme que deslizava em imagens, num ir e vir de
confusão de tempos e que a deixavam imersa em um desenho que não parava de se
mover.
“Amar é um deserto e seus temores... vem me fazer feliz porque eu te
amo... não esqueça que o amor é quase uma dor...”.
Na cumplicidade
da música duas lágrimas desceram pelo rosto quente. Por um instante ele surge
por trás da porta de vidro e de repente materializa-se, vivo outra vez no andar
que se entrega, no sorriso que acolhe, na voz suave que um dia quase matou
aquela mulher de um descuidado amor.
“Sorri, vai fingindo a tua dor... e ao notar que tu sorri todo mundo irá
supor...”
Demorou-se mais
um pouco olhando o novo arranjo de mesas, o deslocamento do buffet, os
funcionários novos, outros hóspedes. Outro momento. Num movimento de diversos
ritmos ela quis, com esforço de morte e de vida, remover terras, rolar pedras e
cavar, ir fundo, no que, por longos meses, teimava em fazer-se brotar e
renascer em dor dilacerante. Foi ali, por meio das diversas frestas do lugar
que ela viveu os intensos e fugazes momentos daquela alegria que inundou a sua
alma de um brilho efêmero. Foi ali, também, que sentiu a mesma alma se contorcer,
ferida, na agonia de um não querer.
Tudo agora toma
distância.
“...tem que morrer pra germinar... quem poderá fazer o nosso amor
morrer...”
Fez uma breve
refeição: coalhada, mamão, café com leite e pão de queijo. Para sair levantou
devagar, foi até a adega no canto da sala examinou com um olhar, atento e
profundo, detalhes dos tempos. Subiu um
degrau que dava acesso a um ambiente com dois sofás em torno de uma mesa. Havia
flores, quadros, objetos de arte, sofisticação. Manteve-se por mais uns instantes
observando, intensamente. Acariciou os contornos do lugar numa despedida muda. Estava
de pé exercitando um alerta lento. Ninguém entendia, ninguém podia entender o
desfazer daquele encontro.
Despediu-se
sorrindo e foi embora. Precisava seguir vivendo outras experiências de amor.