Sentia-se
flutuar em superfícies côncavas que se entrecortavam, teimosas. Difícil
equilibrar-se naquela tentativa. Oscilava entre o prazer e a dor.
Naquele dia o
dia era de dor. Uma dor sem identidade, sem um lugar de começo. Dessas que
nascem órfãs da origem. Escondida em algum canto podia estar em qualquer parte
do seu ser. Uma dor que escapa quando se vê ameaçada. Alimenta-se de si
estendendo garras por muitas entranhas. Paradoxalmente e com mil olhos, ela
lambia a dor em torturantes afagos.
Ardia ao
acariciar aquela razão de viver.
Ergueu
erguendo-se como cada uma das montanhas que ocupava as suas extremidades.
Sentiu o peso e a dificuldade em vencer o peso. Acariciou-o, também.
Determinou-se, fraca, num pequeno sopro de vida que lhe saía por um dos poros.
Contemplativa, observou nele a sutileza da cor que se misturava com o negro da
aura, sua aura. Enfim.
À sua volta tudo
estava escuro, parado e só. Dormiam. O armário; a manga pendente do paletó; o
duende de olhos abertos; o móbile; o retrato torto na parede; o nariz do
ursinho de pelúcia. Todos, todos dormiam! Somente ela respirava... em passos
lentos pela escada. Arrastou-se até a cozinha para tomar água e de lá ver o
claro da lua que entrava por desconhecidas frestas. Sobre a pia, um desenho
dormitava em suaves suspiros.
Virando para o
lado recolheu num único embrulho, coisas e fotos. Das coisas levaria o cheiro,
o formato, a capacidade que as coisas têm de envolvê-la em doces histórias.
Histórias contornadas com coloridas tintas e emolduradas. Levaria as histórias.
Das fotos levaria o movimento, o barulho, a eternidade. Levaria a eternidade em
fotos e momentos.
Desprender-se da
casa, do quarto, do espelho de alcova, da gaveta de calcinhas, da escova usada.
Desprender-se, em desapegos pueris, de todas as amarras e âncoras que houvera
jogado para os lados. Atravessar a textura grossa das paredes. Deslizar por
ângulos, contornos e lugares na mesa. Ir até o porão e colher dali a última
flor em flor desenhada no quadro de giz.
Do porão
levaria, também, a echarpe vermelha.
Da porta da
frente levaria a chave. Apertou na mão, para marcar a palma da mão, uma chave.
Pensou, num pensamento vago, sobre a falta de sentido e apertou mais e mais,
ferindo-se. Duas grossas lágrimas penderam-lhe atingindo os seios moles. O
barulho da queda ecoou despertando um bater de asas. Ela acompanhou-o lenta e
triste como a um casulo que se desprende antecipando-se em agonia e morte.
Ouviu ao longe,
muito distante, passos do Tigre, o cachorro da família. Acariciou-o antes de
partir.
Partir levando
nas costas o fardo aconchegante e macio daquela dor a espetar-lhe em sensibilidades. Da
esquina, numa tessitura de fios confusos do que temia deixar de ser, olharia
para trás e já não veria a planta dos pés.
Uma lufada de
vento úmido e frio levou partículas que se soltaram de si e perderam-se em
dimensões que ela não conseguiria, jamais, alcançar.
O que ficou não caberia na estreitura daquele lugar.
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