quarta-feira, 27 de setembro de 2017

DESENLACE


Quando se viu sozinha no quarto, sorriu. Sentada na cama fez a mão deslizar suavemente pela colcha de tecido vermelho. Era um gesto terno de quem acaricia doces lembranças. Queria abraçar aquele lugar e dizer: voltei.

Por longo tempo ficou refletindo-se em imagens de espelhos múltiplos. Muitas e fugidias imagens. Prendeu-se naquele tempo de presente e passado fundidos em lembranças. Cada pedacinho do lugar guardava o eco da dor que em noites sem fim a fez contorcer-se, arrastar as entranhas expostas, e gemer. Respirava fundo afastando-se para deixar entrar aquele imenso mar por todo o corpo. Era, ela sabia, uma despedida.

Mas desejava estar inteira sorvendo em pequenos goles aquele desenlace. Poderia viver isso sem essa entrega, simplesmente fingindo que nada acontecera. Mas não era isso o que ela queria.

Depois do banho vestiu-se com elegância sóbria, fechou a porta do quarto e saiu. Pelo corredor foi ouvindo os próprios passos que ecoavam em silêncios de lugares vazios e côncavos. Parou por um instante para ouvir e ouvir-se na certeza da cumplicidade compartilhada. Naquele lugar, o silêncio de uma dor guardada fora o seu mais fiel companheiro. Chovia. Deixou a chave na recepção e andou pela calçada molhada. A chuva fina batia-lhe no rosto e fazia brilhar o lugar que ela pisava. Cenários, cheiros, vitrines, pessoas. As luzes do lugar. Andava devagar porque não queria chegar logo. Pisar naquele chão era como retomar um sonho que fora interrompido muitas vezes e ver perspectivas que outrora se esconderam dela.

Em frente ao prédio reformado caminhou mais lentamente preenchendo cada segundo com significados de um passado agonizante. Seguiu pela escada. Observou os quadros e teve a percepção estranha de que somente ali alguma coisa havia mudado. Com um vento a soprar-lhe, lembrou-se de eventos marcantes. Parou um pouco para pensar e entender. Fazer esse percurso e outra vez adentrar por esse passado colocando os pés num chão presente.

Fora convidada para realizar um trabalho temático junto a um grupo de estudantes. Depois do evento voltou para o hotel. Pediu que servissem o jantar no quarto. Enquanto esperava, deitada de bruços, assistiu pedaços de um filme na TV. Tudo estava bem e ela sentia no espírito um conforto bom. O ritual do jantar, íntimo e só, era para ela a expressão da liberdade que buscava. Naquela noite, naquele lugar.

Foi dormir sem chorar.

Acordou cedo para apreciar a cidade. Olhou a vista pela janela do quarto andar num ângulo que, em contemplações de outrora, misturava-se à sua dor numa fusão de contornos indefinidos. O sol dava a tudo novas tonalidades, movendo-se em inquietas nuances para desenhar, ao longe, um horizonte novo. Tomou um banho prolongado desses que a água atravessa, transparente e mole, os muitos lugares do corpo, da alma, de lembranças e de velhos sentidos que agora precisam ceder desmoronando-se em irresistíveis dissolvências. Usando uma calça jeans e uma camisa solta desceu pelas escadas para a sala do café.

Empurrou devagar a porta de vidro que dá acesso ao restaurante. Com um olhar circular percebeu que as coisas estavam fora do lugar. Aproximou-se de uma das muitas mesas vazias e sentou-se para a refeição. Mas não iria fazer isso logo. Queria ficar um pouco ali, sentindo-se. Sentir-se e em seguida dissipar-se no que ela era naquele sentir e assim poder se desvencilhar de si mesma numa atitude sem nome. Mas queria fazer isso com a calma da ternura e com o cuidado de quem não quer desmanchar nada de um jeito que não seja leve. Ir tirando de cada vez pedacinhos daquela camada de lembranças. Era um filme que deslizava em imagens, num ir e vir de confusão de tempos e que a deixavam imersa em um desenho que não parava de se mover.

“Amar é um deserto e seus temores... vem me fazer feliz porque eu te amo... não esqueça que o amor é quase uma dor...”.

Na cumplicidade da música duas lágrimas desceram pelo rosto quente. Por um instante ele surge por trás da porta de vidro e de repente materializa-se, vivo outra vez no andar que se entrega, no sorriso que acolhe, na voz suave que um dia quase matou aquela mulher de um descuidado amor.

“Sorri, vai fingindo a tua dor... e ao notar que tu sorri todo mundo irá supor...”

Demorou-se mais um pouco olhando o novo arranjo de mesas, o deslocamento do buffet, os funcionários novos, outros hóspedes. Outro momento. Num movimento de diversos ritmos ela quis, com esforço de morte e de vida, remover terras, rolar pedras e cavar, ir fundo, no que, por longos meses, teimava em fazer-se brotar e renascer em dor dilacerante. Foi ali, por meio das diversas frestas do lugar que ela viveu os intensos e fugazes momentos daquela alegria que inundou a sua alma de um brilho efêmero. Foi ali, também, que sentiu a mesma alma se contorcer, ferida, na agonia de um não querer.

Tudo agora toma distância.

“...tem que morrer pra germinar... quem poderá fazer o nosso amor morrer...”

Fez uma breve refeição: coalhada, mamão, café com leite e pão de queijo. Para sair levantou devagar, foi até a adega no canto da sala examinou com um olhar, atento e profundo, detalhes dos tempos.  Subiu um degrau que dava acesso a um ambiente com dois sofás em torno de uma mesa. Havia flores, quadros, objetos de arte, sofisticação. Manteve-se por mais uns instantes observando, intensamente. Acariciou os contornos do lugar numa despedida muda. Estava de pé exercitando um alerta lento. Ninguém entendia, ninguém podia entender o desfazer daquele encontro.


Despediu-se sorrindo e foi embora. Precisava seguir vivendo outras experiências de amor.

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