quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Um bater de asas.



Sentia-se flutuar em superfícies côncavas que se entrecortavam, teimosas. Difícil equilibrar-se naquela tentativa. Oscilava entre o prazer e a dor.

Naquele dia o dia era de dor. Uma dor sem identidade, sem um lugar de começo. Dessas que nascem órfãs da origem. Escondida em algum canto podia estar em qualquer parte do seu ser. Uma dor que escapa quando se vê ameaçada. Alimenta-se de si estendendo garras por muitas entranhas. Paradoxalmente e com mil olhos, ela lambia a dor em torturantes afagos.

Ardia ao acariciar aquela razão de viver.

Ergueu erguendo-se como cada uma das montanhas que ocupava as suas extremidades. Sentiu o peso e a dificuldade em vencer o peso. Acariciou-o, também. Determinou-se, fraca, num pequeno sopro de vida que lhe saía por um dos poros. Contemplativa, observou nele a sutileza da cor que se misturava com o negro da aura, sua aura. Enfim.

À sua volta tudo estava escuro, parado e só. Dormiam. O armário; a manga pendente do paletó; o duende de olhos abertos; o móbile; o retrato torto na parede; o nariz do ursinho de pelúcia. Todos, todos dormiam! Somente ela respirava... em passos lentos pela escada. Arrastou-se até a cozinha para tomar água e de lá ver o claro da lua que entrava por desconhecidas frestas. Sobre a pia, um desenho dormitava em suaves suspiros.

Virando para o lado recolheu num único embrulho, coisas e fotos. Das coisas levaria o cheiro, o formato, a capacidade que as coisas têm de envolvê-la em doces histórias. Histórias contornadas com coloridas tintas e emolduradas. Levaria as histórias. Das fotos levaria o movimento, o barulho, a eternidade. Levaria a eternidade em fotos e momentos.

Desprender-se da casa, do quarto, do espelho de alcova, da gaveta de calcinhas, da escova usada. Desprender-se, em desapegos pueris, de todas as amarras e âncoras que houvera jogado para os lados. Atravessar a textura grossa das paredes. Deslizar por ângulos, contornos e lugares na mesa. Ir até o porão e colher dali a última flor em flor desenhada no quadro de giz.

Do porão levaria, também, a echarpe vermelha. 

Da porta da frente levaria a chave. Apertou na mão, para marcar a palma da mão, uma chave. Pensou, num pensamento vago, sobre a falta de sentido e apertou mais e mais, ferindo-se. Duas grossas lágrimas penderam-lhe atingindo os seios moles. O barulho da queda ecoou despertando um bater de asas. Ela acompanhou-o lenta e triste como a um casulo que se desprende antecipando-se em agonia e morte.

Ouviu ao longe, muito distante, passos do Tigre, o cachorro da família. Acariciou-o antes de partir.

Partir levando nas costas o fardo aconchegante e macio daquela dor a espetar-lhe em sensibilidades. Da esquina, numa tessitura de fios confusos do que temia deixar de ser, olharia para trás e já não veria a planta dos pés.

Uma lufada de vento úmido e frio levou partículas que se soltaram de si e perderam-se em dimensões que ela não conseguiria, jamais, alcançar.


O que ficou não caberia na estreitura daquele lugar.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

DESENLACE


Quando se viu sozinha no quarto, sorriu. Sentada na cama fez a mão deslizar suavemente pela colcha de tecido vermelho. Era um gesto terno de quem acaricia doces lembranças. Queria abraçar aquele lugar e dizer: voltei.

Por longo tempo ficou refletindo-se em imagens de espelhos múltiplos. Muitas e fugidias imagens. Prendeu-se naquele tempo de presente e passado fundidos em lembranças. Cada pedacinho do lugar guardava o eco da dor que em noites sem fim a fez contorcer-se, arrastar as entranhas expostas, e gemer. Respirava fundo afastando-se para deixar entrar aquele imenso mar por todo o corpo. Era, ela sabia, uma despedida.

Mas desejava estar inteira sorvendo em pequenos goles aquele desenlace. Poderia viver isso sem essa entrega, simplesmente fingindo que nada acontecera. Mas não era isso o que ela queria.

Depois do banho vestiu-se com elegância sóbria, fechou a porta do quarto e saiu. Pelo corredor foi ouvindo os próprios passos que ecoavam em silêncios de lugares vazios e côncavos. Parou por um instante para ouvir e ouvir-se na certeza da cumplicidade compartilhada. Naquele lugar, o silêncio de uma dor guardada fora o seu mais fiel companheiro. Chovia. Deixou a chave na recepção e andou pela calçada molhada. A chuva fina batia-lhe no rosto e fazia brilhar o lugar que ela pisava. Cenários, cheiros, vitrines, pessoas. As luzes do lugar. Andava devagar porque não queria chegar logo. Pisar naquele chão era como retomar um sonho que fora interrompido muitas vezes e ver perspectivas que outrora se esconderam dela.

Em frente ao prédio reformado caminhou mais lentamente preenchendo cada segundo com significados de um passado agonizante. Seguiu pela escada. Observou os quadros e teve a percepção estranha de que somente ali alguma coisa havia mudado. Com um vento a soprar-lhe, lembrou-se de eventos marcantes. Parou um pouco para pensar e entender. Fazer esse percurso e outra vez adentrar por esse passado colocando os pés num chão presente.

Fora convidada para realizar um trabalho temático junto a um grupo de estudantes. Depois do evento voltou para o hotel. Pediu que servissem o jantar no quarto. Enquanto esperava, deitada de bruços, assistiu pedaços de um filme na TV. Tudo estava bem e ela sentia no espírito um conforto bom. O ritual do jantar, íntimo e só, era para ela a expressão da liberdade que buscava. Naquela noite, naquele lugar.

Foi dormir sem chorar.

Acordou cedo para apreciar a cidade. Olhou a vista pela janela do quarto andar num ângulo que, em contemplações de outrora, misturava-se à sua dor numa fusão de contornos indefinidos. O sol dava a tudo novas tonalidades, movendo-se em inquietas nuances para desenhar, ao longe, um horizonte novo. Tomou um banho prolongado desses que a água atravessa, transparente e mole, os muitos lugares do corpo, da alma, de lembranças e de velhos sentidos que agora precisam ceder desmoronando-se em irresistíveis dissolvências. Usando uma calça jeans e uma camisa solta desceu pelas escadas para a sala do café.

Empurrou devagar a porta de vidro que dá acesso ao restaurante. Com um olhar circular percebeu que as coisas estavam fora do lugar. Aproximou-se de uma das muitas mesas vazias e sentou-se para a refeição. Mas não iria fazer isso logo. Queria ficar um pouco ali, sentindo-se. Sentir-se e em seguida dissipar-se no que ela era naquele sentir e assim poder se desvencilhar de si mesma numa atitude sem nome. Mas queria fazer isso com a calma da ternura e com o cuidado de quem não quer desmanchar nada de um jeito que não seja leve. Ir tirando de cada vez pedacinhos daquela camada de lembranças. Era um filme que deslizava em imagens, num ir e vir de confusão de tempos e que a deixavam imersa em um desenho que não parava de se mover.

“Amar é um deserto e seus temores... vem me fazer feliz porque eu te amo... não esqueça que o amor é quase uma dor...”.

Na cumplicidade da música duas lágrimas desceram pelo rosto quente. Por um instante ele surge por trás da porta de vidro e de repente materializa-se, vivo outra vez no andar que se entrega, no sorriso que acolhe, na voz suave que um dia quase matou aquela mulher de um descuidado amor.

“Sorri, vai fingindo a tua dor... e ao notar que tu sorri todo mundo irá supor...”

Demorou-se mais um pouco olhando o novo arranjo de mesas, o deslocamento do buffet, os funcionários novos, outros hóspedes. Outro momento. Num movimento de diversos ritmos ela quis, com esforço de morte e de vida, remover terras, rolar pedras e cavar, ir fundo, no que, por longos meses, teimava em fazer-se brotar e renascer em dor dilacerante. Foi ali, por meio das diversas frestas do lugar que ela viveu os intensos e fugazes momentos daquela alegria que inundou a sua alma de um brilho efêmero. Foi ali, também, que sentiu a mesma alma se contorcer, ferida, na agonia de um não querer.

Tudo agora toma distância.

“...tem que morrer pra germinar... quem poderá fazer o nosso amor morrer...”

Fez uma breve refeição: coalhada, mamão, café com leite e pão de queijo. Para sair levantou devagar, foi até a adega no canto da sala examinou com um olhar, atento e profundo, detalhes dos tempos.  Subiu um degrau que dava acesso a um ambiente com dois sofás em torno de uma mesa. Havia flores, quadros, objetos de arte, sofisticação. Manteve-se por mais uns instantes observando, intensamente. Acariciou os contornos do lugar numa despedida muda. Estava de pé exercitando um alerta lento. Ninguém entendia, ninguém podia entender o desfazer daquele encontro.


Despediu-se sorrindo e foi embora. Precisava seguir vivendo outras experiências de amor.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Escuro


Converso com ninguém em explicações obscuras porque sei que o lugar está vazio.
Tento dormir pendurada em garras frias.
Olhos secos dançam em lugares ocos.
Insensatos e livres procuram.
São apenas dois dos muitos que veem e fogem do que veem.
Olhos aflitos.

Grávida de mim sinto que sobro.
Sobras que crescem e se debatem num entorno petrificado.
Cheia e cansada não me suporto mais.
Vou explodir outra vez em migalhas.

Espalhada em lágrimas inundo e escapo por frestas que não consegui fechar.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A Falta que Faz



Falta de espaços vazios, de sonhos não realizados.

Sinto, dolorosamente, a falta que faz uma dose certa de dor.
Aquela dor da indiferença quando o que queremos, mesmo que por um só instante, é um olhar apaixonado.
Do telefone que não toca depois daquele encontro cheio de promessas, que guardamos outra vez, com o zelo de quem tem fé.
Dor de ver, repetidas vezes, a esperança de amor... morrer.
Isso dói, pra caramba! Dói junto, a dor da culpa.
Isso faz falta.

Sinto falta de um tempo que seja só meu, egoísta e livre para sentar no bar e ser confundida com uma vadia solitária.
De ver os cochichos e olhares fugidios que se escondem em disfarces e rituais de pena.
Falta de um tempo para o descuido: sem maquiagem, sem banho, sem pente nos cabelos. Descalça como uma peregrina.

É isso. Sinto falta do que faz uma solidão.
Sem interrupções para abraços, afetos ou outras crendices, mergulhar no vazio de uma vida desprovida de ninhos ou camas quentes.
Desprovida de encontros, de vozes doces, de sorrisos ou de brindes em taças de cristais.
Nenhum chamado, por engano que seja para responder em acenos débeis.

Falta de solidão.
A solidão que faz brotar tangos, boleros e sambas-canção. Tudo em forma de poesia.
E na solidão cultivar silêncios intermináveis, prenhes de fertilidade.
Contornar com pincéis rotos os corpos que já se foram em fuga. Banhar em suaves aquarelas almas ausentes.

Ninguém para oferecer água ou café, chegar ou sair. Dizer sim ou dizer não. Apenas a mesa posta, vazia, espichando-se no abandono dos que jazem.
Esbanjar-me na sensação das lacunas profundas, de tempos e espaços expostos somente para os santos e os deuses se compadecerem.
Sinto falta de cantos para me encolher e ser quase nada. De lá delirar em lamentos a dor de sentir.
Dor que dilacera a vida dos que não aprenderam a amar.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A Gatinha Sophie

Tenho uma gatinha. O nome dela é Sophie Charlotte. Isso mesmo, o nome da bela atriz. Nada intencional. Surgiu. Depois lembrei de quem era aquele nome e deixei. Sinceramente, não gosto de gatos ou gatas prefiro os cães. São mais interativos. Mas, essa bichinha apareceu aqui na rua em frente a minha casa e mais parecia um rato. Movia-se entre restos de construção em tropeços e quedas. Quando percebeu a presença de gente agitou-se mais, sem rumo e um tanto desesperada em ruidosos miados. Percebi logo a dor do abandono. Atravessou a rua e se aproximou das minhas pernas. Desvencilhei-me em demonstrações do tipo não chegue tão perto porque não gosto de gatos e nem estou disposta a cuidar de bichos. Tenho mais o que fazer. Mas a gatinha não desistiu e correu pela íngreme rampa que dá acesso à garagem. Num ato de extrema caridade levei-a com uma das mãos pelas difíceis degraus e deixei na porta lateral da casa. Naquela hora não dava para pensar decisões difíceis porque estava de saída. Voltei meia hora depois. A gatinha estava lá. Miando.

Há algum tempo aceitei o convite de uma amiga para o lançamento do seu livro inspirado em uma cuidadora de gatos. Achei uma bobagem, mas comprei dois dos livros. Lá conheci a moça que se dedicava aos bichanos. Uma simpatia! Não sei se para puxar conversa ou por curiosidades pueris fiz várias perguntas sobre os tais bichinhos. Entre alguns preâmbulos disse, sem nenhuma expressão de dúvida, que um dia eu ainda teria um gato.

Tá bom. Pode ser que sim. Vai saber. Eu não acredito, mas. Uma coisa te digo: não quero saber de gatos. Soltam pelos. Fazem xixi. Entrançam-se pelas nossas pernas. Escondem-se em lugares inacessíveis. Mas o pior mesmo são os pelos. Não quero no meu sofá. E os gemidos estridentes de criança recém-nascida no meio da noite, o que é aquilo? Nem pode ser uma coisa de Deus! Exagerei no preconceito. Soube, então, que é só no período do cio, de dois em dois meses, ou quando estão querendo delimitar território. Se é de Deus? Claro! São animais poderosos no lidar com a espiritualidade. É por isso que precisamos dos gatos, para nos proteger. A glândula pineal capta o que há de pior nos arredores noturnos das casas. Quem consegue ver a aura dessas criaturas simplesmente se impressiona. Os pretos, os mais rejeitados pelo senso comum dos medrosos que acreditam em mula sem cabeça, são verdadeiros guardiões.
Sim. Sei nada sobre gatos. Desconversei. A leitura do livro também não ajudou. Eram crônicas e somente uma sobre gatos.

Em rodas de amigos ouvi, com pouco interesse, o relato de experiências com bichinhos de estimação. Verdadeiras histórias de apego que sempre achei um exagero preferindo ficar com o que guardei da infância. Lá havia gatos, sempre, e mais. Sem afagos, dengos ou maus tratos eram deixados por ali esperando comida e atenção. Esgueiravam-se por baixo de mesas, cadeiras, camas e dormiam em qualquer lugar. Quando atrapalhavam muito a lida dos adultos eram expulsos com gritos e leves chutes para sair do caminho.  Não lembro de ter brincado com gatos. Algumas coisas a gente esquece.

Agora esta gata está aqui. Olhei nos olhos dela quando a examinei a primeira vez para saber se era macho. Encantei-me com os olhos. Coisa de feitiçaria. Aliás, os olhos dos bichos são encantadores. Depois vieram as questões práticas. Não sabia comer nem eu sabia como resolver isso. Nos primeiros dias ofereci leite de caixinha, mas ela recusou e continuava miando. Pensei em devolver pra rua, mas não tive coragem. Tentei improvisar seringa e bolinhas pra brincar. Dormia numa caixa na dispensa. Meu filho encontrou as primeiras soluções em conversas com colegas de trabalho e assim descobrimos que havia uma ração para gatinhos recém-nascidos. Depois de duas semanas dei banho para tirar a lama seca e carrapichos que ainda estavam grudados no pelo dela.

Ok. Fiz a minha parte. Agora estava pronta para encontrar dona. Primeiro ofereci para as amigas amantes de gatos. A fulana dorme com seu gato. Deixa-o lamber os pés dela durante a madrugada. Há de querer essa linda gatinha. Ofereci. Não! Aqui já tem dois e agora a cadelinha Mel do meu namorado que veio morar comigo. Você não sabia? Não, não sabia. Então? Mas, vou ajudar a encontrar alguém que queira. Manda fotos. Mandei. Nada. Tirei mais fotos e postei em redes oferecendo essa gatinha. É vira-latas, mas é fofa. Uma linda! Por que você não fica com ela? Todas queriam saber. Por quê? Porque não gosto. Porque não quero. Porque não posso. Viajo muito! Tentei criar um cachorro... Gosto mais de cachorro, entende? Pois é. Não consegui. Tive que doar e até hoje estou de coração partido e cheia de culpa. Acho mais fácil criar gente. Quer ou não quer a gatinha?

Ninguém quis uma gatinha encontrada na rua.
Leva-se ao veterinário. Vacinas. Cestinha de viagem. Crescendo e tomando corpo. Castração. Gata, tu vais dormir na área de serviço. Não quero saber de gata circulando pela casa noite adentro. E, durante o dia tu vais ficar no quintal. Tem vários bichinhos pra tu caçares. Li e descobri que os felinos precisam manter o instinto de caçadores. Não considere que sou sua dona, ainda. Soube de uma loja onde aceitam que se deixe gato para doação. Estava decidida a ti deixar lá, mas fui ver e não tive coragem. Dentro das gaiolas com acomodações e alimentos havia uns cinco gatos. Todos com um olhar triste. Não será dessa vez que vou ti deixar lá.

Nossa conversa ainda não acabou.